Introdução
A violência é, atualmente, um fenômeno crescente na sociedade, pois está articulado às questões políticas-estruturais, econômicas, étnico-raciais, culturais, psicológicos etc., acarretando graves consequências à saúde das vítimas e dos envolvidos na teia de relações do sujeito. Cada vez mais complexa, se expressa por meio de guerras, ódio, disputa de poder, torturas, terrorismo, autodestruição, preconceito, agressão, castigos, exploração sexual, difamação, bullying, cyberbullying, dentre outras (ALMEIDA, 2010).
Porém, a violência não é um estigma da sociedade contemporânea. Ela acompanha o ser humano desde tempos remotos e manifesta-se de diferentes formas, de acordo com o momento histórico e diferentes significados dentro de uma determinada cultura (ALMEIDA, 2010).
Para Almeida (2010), todos nós somos potencialmente violentos, e a maneira de administrar essa agressividade é que nos diferencia uns dos outros. Alguns encontram formas construtivas para canalizar a própria destrutividade, porém, existem aqueles que, influenciados por diferentes contextos endógenos e exógenos, costumam projetar a sua violência descarregando no outro.
Embora a violência não seja um tema especifico da área da saúde, podendo ser analisada por diferentes prismas, se torna relevante o estudo desta temática pelas consequências que essa violência acarreta, por meio de lesões, traumas e mortes físicas, emocionais (MINAYO, 2006) além do aparecimento e/ou desenvolvimento do sofrimento psíquico e outros transtornos mentais.
As lesões decorrentes da violência afetam pessoas de todas as raças, idades e classes sociais, porém, entre os grupos vulneráveis da sociedade, encontram-se as crianças e adolescentes, pois são sujeitos que a violência poderá trazer consequências físicas, mentais e sociais durante todo o seu desenvolvimento da vida.
Diante dessa realidade, questionamos: qual a relação entre violência vivida por crianças e adolescentes e sofrimento psiquico?
Assim, o objetivo dessa pesquisa foi de discutir a relação entre violência vivida por crianças e adolescentes e sofrimento psíquico a partir do olhar de profissionais de saúde de um Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil (CAPSi).
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Para Flick (2009) a pesquisa qualitativa é de fundamental relevância para o estudo das relações sociais devido à pluralização das esferas da vida.
A pesquisa foi desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) do município de Fortaleza-CE. Foram incluídos como participantes da pesquisa os profissionais de saúde de nível superior que desenvolvessem atendimento individual e/ou grupal aos usuários do CAPSi após concordarem em participar da pesquisa. Assim, obtivemos uma amostra de nove profissionais de acordo com os critérios de inclusão.
A coleta de dados se deu por meio do uso da entrevista semiestruturada, onde os profissionais discutiram sobre a temática, respondendo a questão norteadora: "Qual a relação entre violência contra crianças e adolescentes e sofrimento psíquico?". O período da coleta se deu nos meses de setembro a novembro de 2015.
Após a organização do material colhido, as anotações dos relatores, e transcrição das falas e entrevistas, foram lidas, desconstruídas, reconstruídas e posteriormente categorizadas. As categorias foram discutidas utilizando o referencial da Fenomenologia Social de Alfred Schutz, articulando com seus principais conceitos.
O projeto foi submetido à avaliação e aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará - UECE, com número de aprovação 696.813 e CAAE 27056814.0.0000.5534.
Resultados e Discussão
As falas revelam as motivações porque de violência, ao relacionar o sofrimento psíquico e a violência, sejam as crianças que possuem algum problema de adoecimento mental e são vítimas de violência, ou familiares que possuem algum sofrimento psíquico e/ou necessidades decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas, que acabam praticando violência com essas crianças e adolescentes.
Muitas vezes essa história de que eles são burros, de que eles são isso, de que tem problema, eles escutam dentro da própria casa, o irmão... o pai. "Ah menino não adianta falar contigo não... porque tu é doido, não aprende nada..." (E3).
Não deixa de ser uma violência você escutar o seu filho ser chamando de louco de doido, que é agressivo, então assim, os pais eles têm um certo receio eu acho por uma questão mesmo de proteção de seu filho e acaba praticando um certo tipo de violência (E2)
A mãe era usuária de droga, então... o que já justifica alguma coisa no comportamento dele, já justifica o comportamento dele o transtorno... bem... não poderia, seria muito difícil nascer uma criança saudável com a quantidade de droga que ela usava na gestação... o pai também era usuário de drogas, e eu acho que o contexto familiar dele também não colaborou para que ele se desenvolvesse saudável (E6).
Para Schutz, a situação biográfica do indivíduo guarda uma relação explicita com a vida e a história pessoal de cada um dos membros do mundo social. No mundo social o qual essas crianças e adolescentes estão inseridos é experienciado por eles através de uma estreita rede de relações sociais, de sistemas de signos e símbolos com sua estrutura particular de significados (SCHUTZ, 2012).
A exposição da criança a experiências diretas, ao presenciar a violência, como também indireta, por meio dos agravos que esse evento traz à saúde física e mental de sua mãe, são consideradas situações de risco para o desenvolvimento de problemas emocionais, escolares e de comportamento dos filhos. As repercussões na saúde das crianças apresentam associação com sintomas de trauma, quadros depressivos e de ansiedade, comportamentos agressivos, transtorno de conduta e baixo desempenho escolar (DURAND et al., 2011).
Em outra pesquisa realizada com crianças de 6 a 10 anos numa vizinhança pobre e violenta indicou que a exposição a esse tipo de fenômeno (ser vitimado ou ser testemunha) está associada com sintomas de sofrimento mental, tais como ansiedade, depressão, distúrbios de sono e pensamentos intrusivos. Além disso, crianças e adolescentes cujas mães gritam excessivamente, batem, espancam ou punem severamente, dentre outras reações inadequadas, têm o dobro de chance de apresentar problemas de saúde mental com relação aos não expostos a essas práticas (FEITOSA; RICOU; REGO; NUNES, 2011).
A situação biográfica de violência em que podem estar inseridos adolescentes, também, podem estar associados com o risco de utilização de drogas. Adolescentes que presenciaram cenas de violência em âmbito familiar ou comunitário, estava relacionado a ingestão excessiva de bebida alcoólica. Adolescentes que são vítimas de maus-tratos, ou que presenciam a agressão da mãe pelo pai ou padrasto, parecem mais susceptíveis a agravos à saúde mental que comprometam sua autoconfiança e autoestima. Os eventos traumáticos não somente intensificam as manifestações depressivas e de comportamento agressivo na adolescência, como também predispõem para o abuso de substâncias (BENETTI, 2010).
Conclusão
É importante compreender a violência como algo complexo, e articulado aos diferentes contextos em que ela ocorre, não podendo ser analisada de uma forma isolada. Aqui, ela aparece associada ao sofrimento psíquico, devido ao desgaste da família, a falta de conhecimento, de estrutura social. Assim, é preciso que os profissionais se apropriem do conhecimento sobre a violência e sobre a situação biográfica de quem assistem, para que possam traçar estratégias mais resolutivas, no sentido de identificarem, notificarem e acolherem os sujeitos em situações de violência.
Conhecer a situação biográfica dos sujeitos, bem como, o estoque de conhecimento das experiências que possui possibilita o profissional modificar a sua própria situação biográfica, ampliando seu estoque de conhecimento à mão disponível para agir, planejar, pensar sobre o mundo da vida cotidiana, se autoproduzindo a partir da relação com o outro.
Referências
ALMEIDA, M. G. B (Org). A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
BENETTI, Silvia P. C. et al. Problemas de saúde mental na adolescência: características familiares, eventos traumáticos e violência. Psico-USF, vol.15, n.3, pp. 321-332. ISSN 1413-8271. 2010.
DURAND, Julia Garcia et al. Repercussão da exposição à violência por parceiro íntimo no comportamento dos filhos. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 2, p. 355-364, Apr. 2011 .
FEITOSA, Helvécio N.; RICOU, Miguel; REGO, Sérgio; NUNES, Rui. A saúde mental das crianças e dos adolescentes: considerações epidemiológicas, assistenciais e bioéticas. Rev. bioét (Impr.) 2011; 19(1): 259 - 75.
FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução de Joice Elias Costa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
MINAYO, M. C. S. Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
SCHUTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Edição e organização Helmut T.R. Wagner; Tradução de Raquel Weiss. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.